Incitação ao crime de estupro, injúria e imunidade parlamentar – 2
O Colegiado explicou que a defesa sustentava atipicidade da conduta de incitação ao crime, pois as afirmações seriam genéricas. A respeito, registrou que o tipo penal em análise dá ênfase ao aspecto subjetivo da ordem pública, ao sentimento de paz e à tranquilidade social. O bem jurídico tutelado é diverso daquele que é ofendido pelo crime objeto da instigação. Não se trata da proteção direta de bens jurídicos primários, mas de formas de proteção mediata daqueles, pois se enfrenta uma das condições favoráveis à prática de graves danos para a ordem e a perturbação sociais. Assim, a incitação ao crime não envolve ataque concreto ao bem jurídico tutelado, mas sim destina-se a salvaguardar o valor desse bem jurídico do crime objeto de incitação. No caso, a integridade física e psíquica da mulher encontra ampla guarida na ordem jurídica, por meio de normas exsurgidas de um pano de fundo aterrador, de cotidianas mortes, lesões e imposição de sofrimento ao gênero feminino no País. Assim, em tese, a manifestação do acusado tem o potencial de incitar outros homens a expor as mulheres à fragilidade e à violência física, sexual, psicológica e moral, porquanto proferida por parlamentar, que não pode desconhecer os tipos penais. Especialmente, o crime de estupro tem consequências graves, e sua ameaça perene mantém todas as mulheres em situação de subordinação. Portanto, discursos que relativizam essa gravidade e a abjeção do delito contribuem para agravar a vitimização secundária produzida pelo estupro. A Turma enfatizou, ainda, que a utilização do vocábulo “merece” tivera por fim conferir ao delito o atributo de prêmio, favor, benesse à mulher. Além disso, confere às vítimas o merecimento dos sofrimentos a elas infligidos. Essa fala reflete os valores de uma sociedade desigual, que ainda tolera e até incentiva a prática de atitudes machistas e defende a naturalidade de uma posição superior do homem, nas mais diversas atividades. Não se podem subestimar os efeitos de discursos que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher, que podem gerar perigosas consequências sobre a forma como muitos irão considerar o crime de estupro, podendo, efetivamente, encorajar sua prática. O desprezo demonstrado pela dignidade sexual reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura que ainda subjuga a mulher, com o potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais. Portanto, não é necessário que se apregoe, verbal e literalmente, a prática de determinado crime. O tipo do art. 286 do CP abrange qualquer conduta apta a provocar ou a reforçar a intenção da prática criminosa de terceiros.
Inq 3932/DF, rel. Min. Luiz Fux, 21.6.2016. (Inq-3932)
Pet 5243/DF, rel. Min. Luiz Fux, 21.6.2016. (Pet-5243)