Direito à saúde e dever de o Estado fornecer medicamento – 2
O Plenário retomou julgamento de recurso extraordinário em que se discute o dever de o Estado fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave sem condições financeiras para comprá-lo.
No caso, o Estado-Membro havia sido condenado a fornecer medicação para tratamento de doença grave. Na decisão judicial atacada, o ente havia alegado que privilegiar o atendimento de um único indivíduo comprometeria políticas de universalização do serviço de fornecimento de fármacos, em prejuízo dos cidadãos em geral. Dessa forma, debilitaria investimentos nos demais serviços de saúde e em outras áreas, como segurança e educação. Além disso, violaria a reserva do possível e a legalidade orçamentária — v. Informativo 839.
O ministro Marco Aurélio (relator) aditou o voto proferido na sessão anterior. Ele propôs a seguinte tese: o reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em política nacional de medicamentos ou em programa de medicamentos de dispensação em caráter excepcional, constante de rol dos aprovados, depende da demonstração da imprescindibilidade (adequação e necessidade), da impossibilidade de substituição, da incapacidade financeira do enfermo e da falta de espontaneidade dos membros da família solidária em custeá-lo, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.649 a 1.710 do Código Civil e assegurado o direito de regresso.
Para o relator, a existência de familiar possuidor de meios para prover os custos do remédio, sem prejuízo de vida econômica normal e gratificante, poderia ser apontada como fato extintivo do direito pleiteado. Porém, tal condição é mitigada pelo condomínio de obrigações da União, dos Estados, dos Municípios e da família inerente à matéria.
Então, considerando-se o fator tempo, vital em questões relativas à saúde, e presumindo-se que haja familiar em situação econômico-financeira suficiente a proporcionar o remédio, se o Estado for acionado em Juízo, este deverá alegar o fato e requerer, ante o direito de regresso, a citação do familiar abastado e omisso. Afinal, ausente a espontaneidade do familiar, incumbe ao Estado atuar em nome da coletividade, sem prejuízo dos consectários legais. Descabe, a pretexto de ter-se membro da família com capacidade econômico-financeira de prover certo medicamento, eximir-se pura e simplesmente da obrigação de fornecê-lo, portanto.
Por fim, o ministro rememorou que o Estado-Membro recorrente havia silenciado quanto à integração da União na relação processual no polo passivo. Seria, portanto, impossível ressuscitar essa matéria. Esclareceu, ainda, que o recurso extraordinário havia sido analisado com base nas causas de pedir versadas pelo recorrente.
Em voto-vista, o ministro Roberto Barroso desproveu o recurso extraordinário em face da incorporação, no curso do processo, do medicamento em questão pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Afirmou que, no caso de demanda judicial, o Estado estaria obrigado a fornecer medicamento incorporado pelo SUS. Em tais circunstâncias, caberia ao Judiciário apenas efetivar as políticas públicas já formuladas no âmbito do sistema de saúde. Nessa hipótese, deve-se exigir apenas que o requerente comprove: a) a necessidade do fármaco; e b) a prévia tentativa de sua obtenção pela via administrativa.
Já no caso de demanda judicial por medicamento não incorporado pelo SUS, inclusive de alto custo, o Estado não pode ser, como regra geral, obrigado a fornecê-lo. Não há sistema de saúde que resista a um modelo em que todos os remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiro, devam ser oferecidos pelo Estado a todas as pessoas. É preciso, tanto quanto possível, reduzir e racionalizar a judicialização da saúde, bem como prestigiar as decisões dos órgãos técnicos, conferindo caráter excepcional à dispensação de medicamentos não incluídos na política pública.
Segundo consignou, para o deferimento, pelo Poder Judiciário, de determinada prestação de saúde, cinco requisitos cumulativos devem ser observados: a) a incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; b) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; c) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; d) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; e e) a propositura da demanda necessariamente em face da União, já que a ela cabe a decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos ao SUS.
Propôs, ainda, a observância de um parâmetro procedimental: a realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e os entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, a exemplo das câmaras e dos núcleos de apoio técnico em saúde dos tribunais, além dos profissionais do SUS e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). O diálogo, inicialmente, serviria para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento. Em um segundo momento, no caso de deferimento judicial do fármaco, determinaria que os órgãos competentes (CONITEC e Ministério da Saúde) avaliassem a possibilidade de sua incorporação ao SUS, mediante manifestação fundamentada.
O ministro Edson Fachin deu parcial provimento ao recurso. Acolheu a alegação de que o Estado-Membro recorrente não poderia ser condenado a custear sozinho o medicamento, por tratar-se de dispensação excepcional. Ressaltou que haveria a necessidade de a União compor o polo passivo da ação. Afirmou ser o direito à saúde assegurado a todos na Constituição. Enfatizou, também, haver direito subjetivo às políticas públicas de assistência à saúde, configurando-se violação a direito individual líquido e certo a sua omissão ou falha na prestação, quando injustificada a demora em implementá-la.
Para o ministro, as tutelas condenatórias visando à dispensa de medicamento ou tratamento ainda não incorporado à rede pública devem ser, preferencialmente, pleiteadas em ações coletivas ou coletivizáveis, de forma a conferir-se máxima eficácia ao comando de universalidade que rege o direito à saúde. A tutela de prestação individual não coletivizável deve ser excepcional. Desse modo, para seu implemento, é necessário demonstrar não apenas que a opção diversa à disponibilizada pela rede pública decorre de comprovada ineficácia ou impropriedade da política de saúde existente para o seu caso, mas também que há medicamento ou tratamento eficaz e seguro, com base nos critérios da medicina baseada em evidências.
Para aferir tais circunstâncias na via judicial, propôs os seguintes parâmetros: a) prévio requerimento administrativo, que pode ser suprido pela oitiva de ofício do agente público por parte do julgador; b) subscrição realizada por médico da rede pública ou justificada impossibilidade; c) indicação do medicamento por meio da Denominação Comum Brasileira ou DCI – Internacional; d) justificativa da inadequação ou da inexistência de medicamento ou tratamento dispensado na rede pública; e e) laudo, formulário ou documento subscrito pelo médico responsável pela prescrição, em que se indique a necessidade do tratamento, seus efeitos, e os estudos da medicina baseada em evidências, além das vantagens para o paciente, comparando-o, se houver, com eventuais fármacos ou tratamentos fornecidos pelo SUS para a mesma moléstia.
Na espécie, o acórdão recorrido deixou nítida a conclusão de ser devida a dispensa do medicamento não incorporado em virtude da efetiva necessidade de manutenção da vida da autora, da inexistência de substituto na rede pública e do fato de ela não ostentar condições de adquiri-lo.
Por fim, em obediência ao princípio da segurança jurídica, propôs serem preservados os efeitos das decisões judiciais prolatadas nas instancias ordinárias que versem sobre questão constitucional submetida à repercussão geral, inclusive as sobrestadas até a data deste julgamento.
Em seguida, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
RE 566471/RN, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 28-9-2016. (RE-566471)