Direito à saúde e medicamento sem registro na Anvisa – 2
O Plenário retomou julgamento de recurso extraordinário em que se discute o dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — v. Informativo 839.
O ministro Marco Aurélio (relator) aditou o voto proferido na sessão anterior e propôs a seguinte tese: O Estado está obrigado a fornecer medicamento registrado na Anvisa, como também o passível de importação, sem similar nacional, desde que comprovada a indispensabilidade para a manutenção da saúde da pessoa, mediante laudo médico, e tenha registro no país de origem.
Rememorou que, na assentada anterior, havia concluído no sentido da impossibilidade de ter-se a obrigatoriedade do Estado de fornecer medicamento não aprovado pela Anvisa.
Assim se manifestou a partir do disposto no art. 12 da Lei 6.360/1976 (“Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”). A parte final do preceito sinaliza a necessidade de registro do remédio em órgão público. Porém, quando editada a lei, a Anvisa não estava encarregada de realizar o registro, segundo o próprio regulamento (Decreto 3.029/1999).
O ministro esclareceu que a formalidade legal é atendida pela manifestação da Anvisa. Dessa forma, é preciso levar em consideração não só os registros específicos verificados como também o teor da Resolução RDC 8/2014 da Anvisa, a “autorizar a importação de medicamentos constantes na lista de medicamentos liberados em caráter excepcional destinados unicamente a uso hospitalar ou sob prescrição médica, cuja importação esteja vinculada a uma determinada entidade hospitalar e/ou entidade civil representativa ligadas à área de saúde, para seu uso exclusivo, não se destinando à revenda ou ao comércio”.
A resolução estabelece, ainda, critérios para a inclusão de fármacos na lista de medicamentos liberados à importação em caráter excepcional, desde que siga as cautelas constantes da própria resolução. Uma vez enquadrado o remédio no que nela previsto, tem-se o cumprimento da exigência legal.
Sob o ângulo da inexistência do medicamento no Brasil, a resolução, ao versar regras para inclusão de remédios na lista para importação em caráter excepcional, o faz da seguinte forma: a) indisponibilidade do medicamento no mercado brasileiro; b) ausência de opção terapêutica para a indicação pleiteada; c) comprovação de eficácia e segurança do medicamento por meio de literatura técnico-científica indexada; d) comprovação de que o medicamento apresenta registro no país onde está sendo comercializado, na forma farmacêutica, com via de administração, concentração e indicação terapêutica requerida. O parágrafo único do art. 3º do ato normativo prevê, ainda, a exclusão do remédio constante de lista de liberados para importação excepcional se ele não atender a qualquer dos critérios de inclusão.
O ministro Marco Aurélio também ponderou que o art. 12 da Lei 6.360/1976 é explícito ao vedar a industrialização, a exposição à venda ou a entrega ao consumo de medicamento sem que antes haja o registro. Norma proibitiva deve ser considerada tal como se contém. Nesse sentido, foge ao alcance situação concreta, respaldada em laudo médico, a revelar necessário, indispensável à saúde, certo remédio, sem similar nacional, devidamente registrado no país de produção. Nesse caso, independentemente de constar ou não da lista de que cogita a resolução da Anvisa (RDC 8/2014), o Estado está compelido a cobrir o custo de importação do fármaco designado comumente como órfão.
Conclusão diversa implica submeter a sobrevivência do ser humano a ato estritamente formal (deliberação da Anvisa no sentido da inserção na lista de importação autorizada). Pois não se trata de industrialização ou comercialização, mas de atendimento a necessidade maior, individualizada, de pessoa acometida por doença rara. Em geral, nessas situações, o produto somente é encontrado em país de desenvolvimento técnico-científico superior, e o paciente não deve nem pode ficar à míngua.
Desse modo, com ou sem autorização da Anvisa, haja vista não ser o caso de industrialização ou comercialização no território brasileiro, e sim de importação excepcional para uso próprio, individualizado, cumpre ao Estado viabilizar a aquisição.
O ministro Roberto Barroso, em voto-vista, deu parcial provimento ao recurso, para determinar o fornecimento do medicamento pleiteado, já que, no curso da ação, ele foi registrado na Anvisa e incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para dispensação gratuita. Segundo o ministro, como regra geral, o Estado não pode ser obrigado a fornecer, por decisão judicial, medicamentos não registrados na Anvisa. Trata-se de um meio para garantir proteção à saúde pública, atestado de eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no País, além de assegurar o devido controle de preços.
No caso de medicamentos experimentais, sem comprovação científica de eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los. Isso não interfere com a dispensação desses fármacos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável.
No caso de medicamentos com eficácia e segurança comprovadas e testes concluídos, mas ainda sem registro na Anvisa, seu fornecimento por decisão judicial assume caráter absolutamente excepcional e somente poderá ocorrer na hipótese de irrazoável mora da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior a 365 dias). Ainda nessa situação, porém, será preciso que haja prova do preenchimento cumulativo de três requisitos: a) pedido de registro do medicamento no Brasil; b) registro do medicamento pleiteado em renomadas agências de regulação no exterior; e c) inexistência de substituto terapêutico registrado na Anvisa. Ademais, haja vista que o pressuposto básico da obrigação estatal é a mora da agência, as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.
O ministro Edson Fachin proveu integralmente o recurso extraordinário para determinar à parte recorrida o fornecimento imediato do medicamento pleiteado. Para ele, há, nos autos, notícia do registro do fármaco em questão, assim como de sua inclusão no âmbito da política de assistência à saúde. Portanto, há direito subjetivo da recorrente de obter o referido remédio.
Segundo o ministro, a definição do direito à saúde como demanda ética à equidade não conduz a outra resposta que não o reconhecimento de garantias de um mínimo existencial e de efetiva participação. Essa garantia, materializada na atuação do Poder Judiciário, impõe que se realize de modo não cumulativo: a) controle de legalidade, vale dizer, não deve haver erro manifesto na aplicação da lei nem pode existir abuso de poder; b) controle da motivação, ou seja, aferir se as razões do ato regulatório foram claramente indicadas, estão corretas e conduzem à conclusão a que chegou a Administração Pública; c) controle da instrução probatória da política pública regulatória, isto é, exigir que a produção de provas, no âmbito regulatório, seja exaustiva, a ponto de enfrentar uma situação complexa; e d) controle da resposta em tempo razoável, o que impõe à agência o dever de decidir sobre a demanda regulatória que lhe é apresentada, no prazo mais expedito possível (CF, art. 5º, LXXVIII).
Em caso de descumprimento dos parâmetros de controle da atuação da regulação, o Poder Judiciário deve garantir a participação. Pode, para tanto, determinar que o tema seja novamente apreciado ou que haja manifestação da Administração Pública sobre as situações pontuais que não foram objeto de deliberação. A participação garante, portanto, que a demanda dos cidadãos seja oposta à comunidade científica e por ela apreciada em devida conta. Não autoriza a validar como regra medicamento ou procedimento não reconhecido pela agência. Há, porém, exceção: demonstração, em juízo, do descumprimento dos controles fixados para a política regulatória.
Em seguida, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
RE 657718/MG, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 28-9-2016.