Recebimento de denúncia: existência de indícios mínimos de autoria e materialidade do delito

Recebimento de denúncia: existência de indícios mínimos de autoria e materialidade do delito

O Plenário, por maioria, recebeu parcialmente denúncia oferecida em face de senador por suposta prática de crime de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal (CP).

De acordo com a acusação, o senador, no período de janeiro a julho de 2005, teria desviado recursos públicos da chamada verba indenizatória (destinada a despesas relacionadas ao exercício do mandato parlamentar), para pagar pensão alimentícia à filha. A denúncia ainda imputava ao senador a suposta prática dos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, previstos nos arts. 299 e 304 do CP, respectivamente. Conforme narrado na peça acusatória, ele teria inserido e feito inserir, em documentos públicos e particulares, informações diversas das que deveriam ser escritas, com o propósito de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (sua capacidade financeira para custear despesas da referida pensão). Esses documentos teriam sido utilizados pelo senador para subsidiar sua defesa nos autos de uma Representação do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal.

Ainda segundo a denúncia, o parlamentar, ao prestar contas dos valores recebidos a título de verba indenizatória, apresentou notas fiscais emitidas em seu nome por empresa locadora de veículos. Entretanto, os valores referentes à contraprestação real da locação de veículos não foram encontrados na análise de extratos bancários. Além disso, havia incongruência nos dados constantes em notas fiscais de produtor rural, Guias de Trânsito Animal (GTAs), declarações de vacinações contra febre aftosa e declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), relativos ao número de animais vendidos e os efetivamente transportados.

A defesa, por sua vez, alegava capacidade financeira do acusado, tendo em conta os seus subsídios como senador e os ganhos percebidos como pecuarista.

Diante do exposto, o Tribunal declarou a extinção da punibilidade ante a incidência da prescrição, quanto aos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, no que se referia aos documentos particulares (notas fiscais de produtor, recibos de compra e venda de gado, declarações de IRPF, contrato de mútuo e livros-caixa de atividade rural). Reconheceu, por maioria, que as notas fiscais e os livros-caixa seriam documentos privados, pois só poderiam ser considerados públicos aqueles em cuja elaboração, de alguma forma, houvesse a participação de funcionários públicos e aqueles expressamente equiparados em lei. A Corte observou, também, que, embora a emissão das notas fiscais fosse autorizada, regulamentada e padronizada por critérios definidos por entes públicos encarregados da arrecadação tributária, a confecção desses documentos estaria integralmente a cargo do particular, ou seja, não haveria a participação de funcionário público antes ou durante a sua confecção.

Quanto aos livros-caixa, o Plenário entendeu não incidir o disposto no art. 297, § 2º, do CP. Aduziu não ter sido demonstrado que o acusado tivesse sua atividade rural na forma estabelecida pelo art. 971 do Código Civil (CC). Salientou que a atividade rural só está sujeita ao regime jurídico empresarial (hipótese em que se poderia falar em livros mercantis) quando o produtor expressamente organiza seus negócios dessa maneira, compreensão sintetizada pelo Enunciado 202 do Centro de Estudos da Justiça Federal (“O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-se ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção”). Assim, dada a vedação de analogia “in malam partem” no âmbito do direito penal, o art. 297, § 2º, do CP, ao equiparar os livros mercantis aos documentos públicos para fins penais, não pode ser estendido ao ponto de se tomar por público um livro-caixa não mercantil.

O Colegiado, por maioria, também rejeitou a denúncia, por inépcia, quanto aos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, relativamente aos documentos públicos (GTAs e declarações de vacinação contra febre aftosa). Entendeu não haver sido observado o art. 41 do Código de Processo Penal (CPP), que exige a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias.

Asseverou que as conclusões dos peritos que subsidiaram a denúncia decorrem do confronto de informações conflitantes em dois conjuntos de documentos, ou seja, GTAs em confronto com notas fiscais e declarações de vacinações, ou ainda, com a declaração de IRPF. Tal confronto não permite, à evidência, cumprir com o disposto no citado dispositivo do CPP. A inverdade emergente do documento ideologicamente falso é intrínseca ao próprio documento. Logo, para imputar a falsidade ideológica de uma dada GTA, cabe ao Ministério Público demonstrar e apontar na denúncia informação específica do documento em desacordo com a verdade, não bastando a afirmação de estar em desacordo com outros documentos.

Vencidos, quanto a essa questão, os ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Marco Aurélio, que recebiam a denúncia por considerarem-na uma narrativa clara e compreensível dos fatos, de modo a permitir a ampla defesa do acusado, e capaz de fornecer elementos suficientes da existência de indícios.

Para o ministro Roberto Barroso, a acusação teria demonstrado, de forma inequívoca, a manifesta incongruência entre os dois conjuntos de documentos, a revelar que provavelmente um dos dois seria ideologicamente falso, ou pelo menos haveria indícios de uma falsidade, mas os livros-caixa, dos quais se poderiam colher os registros para desfazer a confusão, também não teriam sido escriturados adequadamente. Portanto, estaria caracterizada uma situação não de inépcia, mas de necessária produção posterior de provas, para mais esclarecimentos. Concluía que, para não se receber uma denúncia, seria preciso haver o convencimento da não existência de plausibilidade na imputação de falsidade ideológica em um dos dois documentos, o que não ocorreria no caso concreto. Por fim, os ministros Roberto Barroso e Marco Aurélio ainda atribuíam às notas fiscais de produtor rural e aos livros-caixa a natureza de documento público.

No tocante ao crime de peculato, o Plenário entendeu estarem presentes indícios de autoria e materialidade minimamente suficientes ao recebimento da peça acusatória. Evidenciou a existência de relação próxima entre o acusado e um dos sócios da empresa locadora de veículos, contra o qual já haveria indícios de ser intermediário do acusado na aquisição de empresas de comunicação. Além disso, teria sido celebrado um contrato de mútuo fictício entre o acusado e a empresa locadora com fins de comprovar, perante o Conselho de Ética do Senado Federal, sua capacidade financeira para pagar a pensão alimentícia. A despeito de reconhecida a prescrição quanto ao delito de falsidade ideológica do contrato em questão, a constatação de sua suposta realização, sem que o acusado, suposto mutuante, o tivesse declarado ao Fisco nem a empresa registrado qualquer valor a título de remuneração do capital emprestado, consiste em indício dessa relação de estranha proximidade entre o acusado e os sócios da empresa locadora de veículos.

Ademais, considerou-se o fato de o acusado, ao prestar contas dos valores recebidos a título de verba indenizatória, ter apresentado notas fiscais emitidas em seu nome pela aludida empresa, as quais se destinavam ao aluguel de veículos. Entretanto, mediante análise dos extratos bancários, tanto da referida empresa quanto do próprio acusado, não foram encontrados os lançamentos correspondentes ao efetivo pagamento dos valores constantes das notas fiscais.

Relativamente à alegação da defesa no sentido de os pagamentos de locação terem sido realizados em espécie, a Corte, de início, mencionou o fato de se tratar de vultosa quantia. Ponderou que, apesar de inexistir vedação quanto ao adimplemento de compromissos em dinheiro, a opção pela realização de pagamentos por serviços mensais em espécie, ainda mais quando dotados de certa regularidade, é elemento de convicção que, aliado a outros indícios, não pode ser desprezado. Atentou para o fato de mais da metade do valor total da verba indenizatória para cobrir despesas com o exercício do mandado parlamentar ser justamente direcionada ao pagamento de aluguel de veículos, em localidade diversa de onde o acusado exercia seu mandato, ainda que em sua base eleitoral.

Vencidos, quanto a esse ponto, os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que não recebiam a denúncia por reputá-la inepta.

O ministro Dias Toffoli frisava que o fato de não terem sido encontrados lançamentos de débitos e créditos nos extratos bancários não constituiria indício suficiente da inexistência da prestação do serviço, ou seja, não haveria nexo de causalidade entre um dado e outro. Ademais, a empresa locadora teria emitido as notas fiscais relativas à prestação de serviço, cuja regularidade se presumiria, não havendo uma impugnação contra elas. Sequer teria sido aprofundada a investigação a fim de se coligirem elementos idôneos que indicassem que os serviços não teriam sido prestados.

Acrescentava que a insuficiência narrativa da denúncia também poderia ser vista sob o ângulo da falta da justa causa, desde já, para a ação penal. Afinal, a imputação de peculato, na forma como deduzida, constituiria mera conjectura da acusação.

O ministro Ricardo Lewandowski salientava que, no caso, tendo em conta a fragilidade dos indícios, seria preciso respeitar o “in dubio pro reo”.
Inq 2593/DF, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 1º.12.2016. (Inq-2593)

Autor: guimadeira

Sou um cara de fé que acredita em sonhos. Fã incondicional de Shakespeare, Paulo Coelho e de Gabriel Garcia Marques, também adoro Neil Gaiman e Steven Spielberg. Ah, também tenho vários livros publicados, sou mestre e doutor em processo penal pela USP e Juiz de Direito. Corredor amador.

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