Tratamento justo e a necessária responsabilidade

Na data de ontem, dia 03.11, uma reportagem do jornal The Intercept gerou revolta nas redes sociais em todo o Brasil: nela víamos uma audiência em que a vítima de estupro era tratada de forma desrespeitosa e também éramos informados de que foi acolhida a tese de estupro culposo por parte do magistrado e que absolveu o acusado.

A revolta foi tamanha que tomou corpo pelo país todo: as mais diversas pessoas se manifestaram sobre o tema. Muitos professores de direito, das mais variadas matérias, comentaram sobre o tema elevando o tom sobre um tema muito delicado.

Passado o momento da gritaria é necessária alguma reflexão e quero destacar três pontos neste texto e a partir dele convocar a que pensemos juntos para o futuro.

Em primeiro lugar destaco a forma com que fora tratada a vítima. Ninguém pode ser tratado daquela forma no sistema de justiça. Precisamos tratar as pessoas de maneira respeitosa e gentil.

Falharam todos naquele ato: seja quem tratou a vítima daquela forma, seja quem permitiu que ela fosse assim tratada. Houve nova revitimização e ela tem minha total solidariedade.

O que devemos aprender com este chocante desrespeito? Devemos pensar em mecanismos para evitar que atos como estes voltem a se repetir. Este é um grande desafio e devemos todos nos comprometer com ele.

Em segundo lugar, falou-se em “Estupro culposo”. A matéria do Intercept diz que esta tese foi levantada pelo Ministério Público e acolhida pelo magistrado.

Bem, isso não é verdade.

Após ler a as alegações finais do Ministério Público e a sentença do Juiz percebemos que foi o acusado absolvido por falta de provas. Isso mesmo, o fundamento da sentença é a falta de provas.

Apenas em um lugar constou a tese do estupro culposo: na matéria do intercept. Posteriormente o jornal fez uma nota a sua matéria dizendo que colocou a expressão apenas para resumir o tema. No entanto no corpo da matéria continua o erro de dizer que esta tese, inventada pelo jornal, foi acolhida pelo Juiz.

O que devemos aprender com isso? Que pelos mais variados motivos a imprensa erra. Que comentar decisão judicial sem ler a decisão é o caminho certo para cometer erros.

E o que isto fez? Isso acabou por tirar o foco do problema evidente ali: a forma cruel como a vítima foi tratada. Foi um desserviço feito pelo jornal.

Há por fim um terceiro ponto e este ponto é uma constante em minhas críticas: vi professores das mais variadas matérias comentando sobre um tema que não conhecem e a respeito de uma sentença que não leram.

É uma pena.

Professores devem ser responsáveis. Professores tem responsabilidade e cuidado para com seus alunos. Comentar sobre uma matéria que não conhecem e sobre uma sentença que não leram é tratar com desrespeito todos aqueles que são seus alunos.

Por fim, muitos vieram me perguntar sobre a culpa ou inocência do acusado: eu não tenho como avaliar culpa ou inocência por dois motivos. Primeiro porque não li as provas dos autos. Segundo porque não posso comentar, pelas restrições legais, sobre este tipo de tema.

Que este caso nos permita refletir sobre o machismo próprio do sistema. Que nos permita criar mecanismo para impedir que novas vítimas de estupro sejam tratadas daquela forma cruel. Que professores repensem seu papel e sua responsabilidade: likes e clicks não valem comentar um caso de matéria que não é sua e de sentença que não leram.

Autor: guimadeira

Sou um cara de fé que acredita em sonhos. Fã incondicional de Shakespeare, Paulo Coelho e de Gabriel Garcia Marques, também adoro Neil Gaiman e Steven Spielberg. Ah, também tenho vários livros publicados, sou mestre e doutor em processo penal pela USP e Juiz de Direito. Corredor amador.

37 comentários em “Tratamento justo e a necessária responsabilidade”

    1. Parabéns Professor, uma reflexão consciente!
      Tenho visto inúmeros comentários nas redes sociais, principalmente de pessoas da área do direito comentando o caso, ao que parece sem ler a sentença!

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  1. Professor, muito obrigado pelo texto!
    Penso da mesma forma e em tempos tão turbulentos e de pouca reflexão é muito importante que as pessoas aprendam a analisar e interpretar as notícias, bem como as suas fontes de divulgação.

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      1. Em tempos de manipulação de mídias, seria prudente, antes de tirarmos conclusões, ouvir o que dizem os envolvidos em sua defesa. Parece que o MP informou que houve edição do vídeo pela intercept. Necessário conferir.

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    1. Professor Madeira, sou sua admiradora justamente por sua postura diante de temas e situações polêmicas. Concordo em gênero, número e grau com suas palavras. Obrigada por ser para nós que te admiramos esse ponto de lucidez em meio a tanta desinformação.

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    2. Concordo plenamente, hoje de manhã comentei em um grupo sobre o tema, que como é que pode opinar sobre um tema que nem se quer existe, e que não tenho acesso aos autos. Me xingaram rsrsrsrrs quanta ignorância!!!! Brasil, o país de muitos sensacionalistas, ignorantes e desatualizados !!!!!

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      1. Mad, eu assisti, fiquei chocado, decepcionado com os profissionais do caso, com muita raiva mas não consigo julgar mérito porque sou de outra área como você sabe! Mas na minha cabeça só passava uma coisa, que atitude os juizes que são meus amigos tomariam, e tenho absoluta certeza que nenhum nunca chegaria perto do que aquele rapaz fez, deixar chegar as ofensas naquele ponto! Fiquei enjoado real ;-(

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  2. Muito obrigada por suas considerações, professor! Fiquei aflita com essa “invenção” de estupro culposo. Que irresponsabilidade. Mudou o foco do verdadeiro problema: a audiência. Além disso, ver professores por quem tenho muito respeito opinando com base numa matéria jornalística, foi triste.

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  3. Obrigada pela sensatez!
    Sempre que vem uma corrente nas redes sociais com uma expressão eu desconfio…
    No caso, o que mais me chocou foi a forma como a vítima foi tratada, e usar do artifício de que a defesa pode tudo não desce.
    A omissão do magistrado e do promotor me gerou indignação, e vejo que não podemos nos calar nessas situações. Nem imagino como anda o emocional dessa menina. Que um dia ela se recupere…

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  4. Estava ansiosa esperando por este texto. Sempre muito cuidadoso e sensível ao tratar de temas assim. Obrigada – mais uma vez – pelas palavras de sensatez.

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  5. Maravilhoso! Resumiu com perfeição o que houve.

    Ps.: tendo mais a acreditar em má-fé do que erro do jornal!

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  6. Professor, obrigada pelo esclarecimento, mas fiquei me perguntando: seria em tese cabível cogitar de conduta culposa num caso de estupro de vulnerável? Seria possível, numa situação hipotética, que o agente não saiba que a vítima não tinha condições de apresentar resistência? Obrigada.

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  7. A primeira ponderação técnica que vi em meio a milhares escandalosas! Obrigada professor por tamanha sensatez!!!!!

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  8. Nós mulheres precisamos lutar para que isso acabe. A descredibilizacao da vítima nesses casos sempre beneficia os autores. Nesse caso, em específico, não houve colaboração para o fornecimento das imagens do estabelecimento em que os dois estavam. Mariana tem direito de usar a roupa que quiser, beber e sair com quem quiser e, ainda assim, dizer não na hora H. Nós mulheres somos rotuladas a todo momento, vivemos no Século 21, isso tem que acabar! E se fosse sua filha??????

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  9. Professor, muito obrigada! Assumo que infelizmente fui uma das que acreditou na reportagem sem analisar a fundo. Infelizmente o desrespeito sofrido pela vitima e comprovado no video, me fez acreditar que tudo ali seria verdade, incluindo que de fato aquela tese teria sido acatada. Errei como operadora do direito! Mas obrigada, o senhor, brilhantemente chamou a minha atenção, com esse texto, e espero nao cometer o mesmo erro.
    No mais, espero, do fundo do meu coração que toda a polêmica que envolveu o caso sirva para que todos repensem suas atitudes!

    Obrigada, professor!

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  10. Olá professor, tudo bem? Também vi vários professores, alunos e profissionais do direito postando coisas, como “não existe estupro culposo” ou “estupro culposo é quando o judiciário não tem a intenção de condenar estuprador”. Após ler a sentença, ficou claro para mim como toda essa comoção foi fruto da falta de leitura e conhecimento sobre o tema. Com relação ao seu texto, concordo integralmente com o que o senhor disse. Venho por meio desse post agradecer ao senhor e aos outros profissionais que estão trabalhando pelo esclarecimento sobre o tema. O senhor tem o meu apoio. Muito obrigado!!

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  11. Ok… tecnicamente foi uma absolvição por falta de provas. Porém, essa absolvição só comprova q a palavra da vítima vale menos que uma nota de 2 reais. Essa é a minha indignação. Se a palavra da vítima é tão ínfima, como nos defenderemos? A estupro é, na maioria das vezes, um crime silencioso. Essa sentença descredibiliza todas as vítimas e cala todas as mulheres. É a voz da técnica calando a voz de todas as vítimas.

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  12. Excelente professor! Aqui em Recife, vi colegas compartilhando o tema estupro culposo e se indignando com tal decisão. Entretanto, como o Sr. bem esclareceu, a decisão se firmou claramente no princípio do in dúbio pro reo. Infelizmente, se foi necessário usar esse tema para chamar a atenção da sociedade pelo que a vítima passou no julgamento e investigações adjacentes. Entretanto, tal exposição fragiliza novamente essa vítima. Isso é bastante difícil, pois temos um vício horroroso de lermos somente as notícias pela metade, e não procuramos entender e buscar realmente seu conteúdo para poder discutir adequadamente. Muitas pessoas compartilharam essa notícia, mas não estão preocupados com a reexposição dessa vítima. Esse crime não admite modalidade culposa, então não há o que se discutir. O que se deve é ter o cuidado para que atos machistas e desproporcionais como os que ocorreram nesse julgamento, não aconteçam.

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  13. De todas as análises, de tudo que vi de direntes profissionais e renomes da área, o seu equilíbrio e bom senso foi de longe o melhor comentário sobre o assunto. Um grande abraço madeira

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  14. Parabéns pelas considerações, professor!
    Como alguém que foi vítima de uma situação de abuso muito parecida com a em questão, e que hoje é operadora do direito, toda a situação me entistece muito. O descuido do jornal com a expressão usada, seja ou não de má-fé, toda a espetacularização que está em torno do caso, e em consequeência o desvio do foco sobre o que realmente deveriamos estar prestando atenção: como o judiciário trata, muitas vezes, as vítima de crimes contra a dignidade sexual. Foran tantas as coisas que já li nesses útimos dias que me embrulharam o estômago, mas o texto do senhor é um ponto de sensatez no meio de tudo isso.

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    1. Parabéns professor, fui tentar explicar dessa mesma forma para algumas pessoas e acabaram distorcendo meus fatos, acabei sendo o “defensor do acusado”. Espero que um dia as pessoas consigam ter mais razão do que emoção ao analisar fatos extremamente delicados.

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  15. A questão não é a palavra da vítima. Inclusive, em casos como esse, a palavra da vítima tem muita força. Mas no caso especifico, todas as outras provas colhidas não corroboraram com a versão dela, testemunhas, vídeos, exames, foram no sentido de que ela estava consciente, de acordo com a fundamentação da sentença.

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  16. Madeira,
    Obrigada pela generosidade, e tamanha delicadeza ao tratar do tema.
    Com clareza e dentro dos seus limites.
    Obrigada pela educação!

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  17. Professor a sentença contém uma referência doutrinária dizendo: “Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”. Fls. 3611. Acho importante corrigir o post. Exceto por esse comentário, excelente texto. Agradeço pela lucidez

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  18. Em primeiro lugar, quero agradecer a Deus por ter um magistrado, professor e ser humano do seu porte, tê-lo como minha referencia de profissionalismo, reinicia-me …

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